Celebração da Descrença

21/06/2011 13:06

    Livro debate o fato de a matemática ser aplicável a quase tudo, inclusive a ciências irmãs. Os números seriam tão presentes no universo que valeria a pergunta: será que o Criador era matemático?

    O mais recente livro do astrofísico romeno Mario Livio chama-se Deus é matemático? Não é a primeira vez que Livio investiga e responde (ou tenta responder) questão do tipo. Sua bibliografia – Razão Áurea: a história de Fi, um número surpreendenteA equação que ninguém conseguia resolver, entre outros livros – conta com obras que perseguem símbolos (números, razões) que aproximariam, de algum modo, o 'mundo real'  do universo da matemática. Dessa vez, em seu novo livro, o cientista parece ter bancado a pergunta que sempre tangenciou em seus escritos pregressos.

    Afinal, a "efetividade da matemática" (termo do Nobel Eugene Wigner) na vida prática é fruto de uma invenção do homem? Ou não, é mais que isso? Será que a matemática sempre esteve entre nós, com suas regras preestabelecidas, universais por assim dizer, e que nosso papel seria apenas mergulhar fundo em seu mistério (preexistente!) para de lá entender um mundo regido por números? 

    Em outras palavras: a matemática seria criação do homem ou da natureza (Deus)?

    Em Deus é matemático?, Livio aponta: "Não importa se são físicos tentando formular teorias do universo, analistas de bolsa de valores coçando a cabeça para prever a próxima quebra do mercado, neurobiólogos construindo modelos da função cerebral ou estatísticos do serviço secreto militar tentando otimizar a alocação de recursos; todos eles estão usando matemática."

    De fato, impressiona bastante o fato de a matemáticaser a 'Ciência das ciências'. Segundo Livio, o método científico de René Descartes (1596-1650) foi fundamental para que a matemática servisse como prova da validade da maioria das teorias. Para ser 'verdade', é necessário provar em números.

    Assim, o autor brinca com a falsa modéstia dos matemáticos que afirmam que essa ciência não 'serviria para nada' ou, dependendo do estudo, teria pouca (ou nenhuma) aplicabilidade no mundo físico. Livio fala da "efetividade passiva": termo cunhado para apontar abstrações da matemática que, anos (ou séculos) depois, são usadas para algo prático. Cita a teoria dos números do matemático britânico Godfrey Harold Hardy (1877-1947) como exemplo.

    Hardy enchia-se de orgulho para dizer que não via aplicabilidade alguma no seu estudo. Estava errado. Décadas depois, houve uma revolução no desenvolvimento de códigos criptografados. A grande maioria valia-se dos estudos do matemático britânico.

    Livio cita ainda uma dezena de outros estudiosos que, assim como Hardy, tiveram seus trabalhos usados efetivamente em anos posteriores mesmo sem intenção.

    Mas a pergunta persiste: afinal, a coincidência da matemática com 'as coisas do mundo tangível' são meras coincidências ou há uma verdade dos números por trás de tudo? 

    Em mais da metade das 352 páginas do livro, tudo leva a crer que a resposta de Livio será: "Sim, Deus é matemático". Mas uma bem-vinda reviravolta é apresentada quando o autor introduz opiniões alternativas que dizem que não, que a matemática é apenas "mais uma forma de expressão da mente humana" – tal qual as artes ou a filosofia.

    O autor expõe os argumentos do matemático britânico Michael Atiyah (1929-), vencedor da Medalha Fields (prêmio concedido pela União Internacional de Matemática) em 1966. Atiyah dizia ser bastante sedutor acreditar que a matemática era uma ciência preexistente, pré-humana. Mas não podia compactuar com essa visão.

    Sua explicação: ele afirmava que 'o contar', o ato mais básico da matemática, poderia não ser uma noção primordial caso a inteligência não tivesse residido na espécie humana (que tem dois braços, duas pernas, uma cabeça etc.), e sim em uma água-viva isolada nas profundezas do oceano. Para o matemático, se assim fosse, os dados sensoriais básicos não estariam disponíveis para o desenvolvimento da matemáticacomo a conhecemos, afinal não existiria nada para contar. 

    Portanto, a nossa matemática não passaria de uma questão de cognição, de estar no mundo, de sentir o mundo com os sentidos humanos.

Meio-termo

    Mario Livio chega ao fim de sua jornada (involuntária) pela história da matemática sem uma resposta definitiva. No final, apresenta um politicamente correto meio-termo entre as duas visões para responder a sua pergunta-título. A matemática está no humano e na natureza e os dois, de alguma forma, interagem. 

    No fundo, a viagem que fazemos durante o texto – desde Pitágoras até os matemáticos mais modernos – ressoa muito mais do que a pergunta que dá título ao livro. Afinal, entender o caminho que levou alguns a verem amatemática como "milagre" e outros, como expressão humana, é muito mais instigante do que descobrir a solução de um suposto mistério.

    A dúvida persistente, aliás, torna o livro ainda mais bonito. Levar a matemática como profissão de fé e a elevar metaforicamente ao trono de Deus soaria dogmático e ortodoxo (como qualquer religião radical), caso a questão não fosse discutida, relativizada e reavaliada, como em toda 'boa experiência' científica. Parafraseando não o poeta, mas o físico e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662): há razões que a própria razão desconhece – e saber disso, como prova este Deus é matemático?, expande a nossa percepção do mundo.

 

Fonte: Ciência Hoje